É aqui que as coisas começam a ficar estranhas. Ou mais estranhas. Entra em cena uma personagem que vai ajudar Edie a decifrar toda a trama por trás da floresta.
J.C.
25.
Um cheiro delicioso de carne assada me acordou de um sono sem sonhos.
Estava em um quarto pequeno, mas aconchegante. As paredes eram feitas de
ripas de madeira e estavam cobertas de fotos de família. A cama era tão
confortável que parecia que eu estava deitado em nuvens. Demorei a levantar,
não querendo perder aquela mordomia, mas o rumor de conversas vindas do outro
cômodo era tão irresistível que tive que sair da cama.
Reparei no porta-retrato em cima do criado-mudo, também de madeira. Em
uma foto antiga, uma jovem de cabelos amarelos e rosto bonito sorria. Era Rhea,
pude reconhecer, uma Rhea bem mais jovem.
- Rhea – eu murmurei. – Como é que eu te conheço?
Uma explosão de risadas me arrancou do quarto. Segui o ruído das
conversas e atravessei um corredor estreito e nu até chegar a um cômodo amplo,
uma mistura de sala de estar e cozinha.
Numa lareira de tijolos, uma fogueira crepitava iluminando meus amigos.
Eles rodeavam Rhea, que estava sentada em uma poltrona antiquíssima e fofa.
Tudo na sala era feito de madeira, mas em nenhum momento isso passava uma ideia
de algo tosco ou rude. Era um ambiente que irradiava nostalgia e tranquilidade.
- Edie. – Dimas se levantou de uma pilha de almofadas jogadas no chão. –
Você está bem?
- Claro. – E estava mesmo.
- Você desmaiou de repente...
- É só fome – Rhea cortou Dimas, e se levantou da poltrona. – Mas vamos
resolver isso rapidinho. A sopa está quase pronta.
Rhea atravessou o cômodo parar chegar ao espaço destinado à cozinha. No
fogão, que parecia um calhambeque de tão grande, uma imensa panela de metal
fumegava. A velha misturou a sopa lá dentro com uma colher de pau. O cheiro era
tentador.
- Já vou tirar a carne do forno – ela disse, extinguindo o fogo sob a
panela de metal. – O pessoal que esteve aqui ontem me ajudou, eu tenho bastante
carne lá fora, vocês viram.
- Senta aqui, Edie – Amanda convidou-me para as almofadas.
Dimas e eu nos sentamos, o fogo nos esquentava e animava. Era bom estar
em uma casa de novo.
- Vocês estavam se divertindo – eu disse.
- A Rhea é ótima – Jon falou, sorrindo. – Uma figura muito interessante.
Cem anos, segundo ela.
- Ela nos deixou dormir aqui – Liana disse. – Achei uma boa, não íamos
conseguir chegar ao condomínio hoje de qualquer jeito.
Era bem verdade. Tínhamos errado com relação à distância, e embora meu
desejo de chegar logo ao apartamento de meu pai fosse imenso, não era muito
prudente se arriscar sem motivo.
- Agora pronto, crianças – Rhea disse do fogão. – Hora de comer, vão
lavar as mãos. Lá fora tem uma pia com uma tina de água. Vocês devem ter
percebido que eu não tenho água encanada aqui.
Fomos em fila indiana para fora. A casa de Rhea era uma bela e simples
construção em madeira localizada entre duas grossas e onipotentes árvores. Vista
de determinados ângulos, a casa e as árvores pareciam se fundir.
Ao lado das duas árvores protetoras ficavam o banheiro (do lado esquerdo)
e a pia (lado direito). O bangalô de
madeira se localizava bem no centro de uma clareira circular, com as mesmas
árvores baixas e tortas delimitando seus domínios. Também ali, pedaços de carne
pendiam nos galhos.
Lavamos as mãos, um por vez, o cheiro de comida caseira nos alcançando
mesmo ali fora. A lua cheia iluminava a pequena clareira como um holofote,
fazendo reluzir os pedaços de carne. E foi quando algo me chamou a atenção.
Estava pendurado nos galhos baixos, numa árvore bem próxima. Parecia uma enorme
peça de roupa, não consegui identificar se uma calça ou uma camisa, pois estava
dobrada. Não era muito higiênico secar roupas no mesmo lugar onde de colocava a
carne, e isso fez soar um alarme na minha cabeça, o mesmo que disparara logo
que encontramos Rhea na trilha. De repente, o cheiro das carnes me pareceu
forte e enjoativo, e o que eu via pendurado no galho parecia menos com uma peça
de roupa e mais com...
- Vamos, Edie. Estou morrendo de fome.
Amanda nos guiou de volta para dentro. Mesmo com dúvidas e receios, eu
também estava morrendo de fome.
26.
Rhea preparou uma mesa farta para nós, que não sabíamos o que era comida de
fogão há dois dias. Uma tina com sopa fumegante ocupava o centro da mesa, junto
com um pão caseiro branquinho e fofo, cortado em rodelas. Uma peça de carne
assada rodeada de cebolas grelhadas completava o banquete.
O cheiro era delicioso, e não sei como me aguentei para não avançar para
a refeição, enfiando tudo na boca como um animal selvagem. Esqueci por completo
as frutas guardadas nas mochilas, que já não pareciam tão apetitosas.
- Vamos, crianças – Rhea nos encorajou, sentada à cabeceira da mesa. –
Podem se servir, vamos.
Não havia talheres na mesa, só uma enorme faca incrustada no pedaço de
carne, mas não era por um esquecimento de Rhea. Vimos como ela se servia e
imitamos. Rhea pegou sua cuia, todos tínhamos uma, e mergulhou na tina de sopa.
A cuia voltou cheia e molhada e Rhea não demorou em levá-la a boca, bebendo a
sopa como se fosse um suco.
Me lembrei de imediato de uma estranha mistura que minha mãe fazia quando
queria emagrecer. Era uma sopa, pelo menos ela dizia que era, onde se
misturavam todos os temperos possíveis e imagináveis. Quando pronta, a mistura
tinha consistência e cor de vômito, além de um cheiro insuportável. No início,
minha mãe servia a sopa em um prato, e tomava com colher como se fosse comida
de verdade, mas a tortura era tão tremenda que ela passou a colocar a mistura
num copo e beber num só gole, para acabar com aquilo de vez.
A sopa vermelha escorreu pela boca de Rhea, pingando de seu queixo
ossudo. Por um momento, todo meu apetite se extinguiu, e uma onda de repulsa e
asco me dominou vinda de lugar nenhum. Jon, sentado a meu lado e indiferente a
meus engulhos, mergulhou sua cuia na tina de sopa e a entornou, bebendo tudo
num gole só. Minha barriga roncou alto para me lembrar que não era hora para
frescura.
- Está uma delícia, Rhea – Amanda disse, se servindo de sopa pela segunda
vez. – Tem um gosto que eu não consigo identificar, é de legumes?
Rhea limpou a boca com a manga do vestido e sorriu para Amanda. Deixei
minha cuia cair com um estrondo na mesa ao ver os dentes de Rhea cobertos de
sangue. Levantei-me com um pulo, mas uma segunda olhada me fez ver que seus
dentes estavam alvos, como sempre foram.
- Calma, Edie – Jon disse, também se levantando. – O que foi?
Minha sopa se espalhara pela mesa, tingindo-a de vermelho. Procurei um guardanapo
próximo, mas não tinha nenhum.
- Desculpe, acho que... Pensei ter visto uma coisa. A luz me pregou uma
peça, foi isso.
Rhea apareceu com um pano nas mãos e um sorriso no rosto.
- Tudo bem, foi só um engano. Temos sopa suficiente.
Enxuguei a mesa molhada com o pano puído de algodão. A sopa vermelha
sendo absorvida pelo algodão branco me deu mais uma sensação estranha,
incômoda. A sopa de Rhea revirou no meu estômago e quase fez o caminho
contrário para ser expulsa pela minha boca. Mas consegui me segurar.
- Senta, Edie – Perla falou. – Você deve estar fraco, com fome.
Todos na mesa dividiam a mesa opinião, eu podia dizer só de olhar seus
rostos. Se eu continuasse tendo ataques como aquele, ia ser abandonado no meio
da floresta, como João e sua irmãzinha Maria.
João e Maria, pensei. O que
João e Maria tinham a ver com aquilo? Uma lembrança antiga tentou emergir de
minha cabeça. Nada. Mas o caminho era aquele, com certeza. João e Maria...
Balancei a cabeça para me livrar de ideias tão sem sentido.
Sentei-me novamente e os rostos da caravana me encararam, alguns
preocupados, outros intrigados. Dimas, Herick, Perla e Amanda na minha frente.
Jon, Gaspar, Marino e Liana ao meu lado.
- Mais sopa, criança? – Rhea se voluntariou a me servir. Eu segurei seu
braço esquelético para impedi-la, e minha mão ardeu em fogo. Larguei o braço da
velha, minha mão queimando, dolorida.
Rhea parou com a mão no ar, estendida em direção à minha cuia, mas sem
alcançá-la. Os olhares em mim de novo. Deus, aquilo estava ficando estranho.
- Sabe... – tentei desconversar. – Parei com a sopa, já.
Rhea sorriu compreensiva, e bateu na testa com a mão.
- Claro. Não fiquem se entupindo de sopa. Ninguém comeu a carne ainda.
Um rumor de concordância correu a mesa. Dimas bateu palmas, ansioso.
- Joanatan, por favor, faça as honras – pediu Rhea.
Jon levantou para fazer o trabalho. Perdido sem um garfo para espetar o
pedaço de carne, parou um segundo, pensativo e confuso. Retirou a faca estocada
na carne, mas isso não lhe trouxe ideias.
- O quê, criança? – Rhea perguntou.
- É que eu preciso de um garfo... Para segurar a carne.
- Não se preocupe com isso. Pode usar as mãos, sabemos que está limpa.
- É, Jon – Dimas disse impaciente. – Corta isso logo.
Levantando os ombros, Jon segurou
a peça de carne com a mão e passou a faca, cortando-a transversalmente. A
lâmina deslizou suave do início ao fim e uma fatia da carne tombou na travessa
rústica.
- Muito bom – Dimas se precipitou. Pegou duas fatias do pão caseiro e
imprensou o pedaço de carne entre eles, fazendo um sanduíche. – Vocês me
desculpem, mas eu estou matando por um pedaço de carne.
Dimas colocou o sanduíche inteiro na boca, ficando com bochechas do
tamanho de laranjas. Recostou-se na cadeira com uma expressão de puro prazer no
rosto. Herick riu.
- Mais, Jon. – Herick se aproximou da travessa. – Mais um pouco.
Jon cortou mais um pedaço de carne e Herick a pegou, jogando-a direto na
boca. A carne estava mal passada e a cada fatia cortada, um filete de sangue
escorria, formando uma pequena poça vermelha na travessa.
- Vai um pedaço, Edie? – Jon ofereceu. Todos, com exceção de Rhea,
saboreavam a carne e esperavam por mais. – Olha que eu estou abrindo mão do
cargo de churrasqueiro.
- Pode ser. Me dá um pedaço.
Jon tirou mais uma fatia de carne e me entregou direto na lâmina da faca.
A carne estava tão macia que eu pude dobrá-la ao meio e colocar na boca. Como
carnívoro inveterado, percebi no ato que aquilo não era uma carne convencional.
Revisei mentalmente os animais que viviam em florestas e imaginei qual deles eu
estava mastigando. Cervos, coelhos, javalis... Desisti. Fosse o que fosse,
estava uma delícia, o suficiente para me fazer querer mais um pedaço.
Peguei a faca que Jon tinha deixado ao lado da travessa e inspecionei a
peça de carne, escolhendo de onde eu tiraria o próximo pedaço.
- Quero mais também, Edie – Dimas disse com a boca cheia.
Uma risadinha rouca me fez virar para Rhea. Ela estava com as mãos
magrelas sobre a mesa nos observando comer.
- E você, Rhea? – eu perguntei. – Quer um pedaço?
- Não, criança. Comam o quanto quiserem.
E sorriu satisfeita, mostrando os dentes pequenos e pontiagudos, como
presas de piranha.
- Droga.
Me levantei, derrubando a cadeira no chão. A faca escorregara e cortara
meu dedo indicador. Um grande rasgo se iniciava no topo de meu dedo e seguia
todo o caminho até o limite da palma de minha mão. Meu sangue escorria
incontrolável.
- É muito fundo, o corte? – Dimas deu a volta na mesa, se aproximando.
- É melhor lavar antes que infeccione. – Era Perla.
- Pior que a gente não tem nada para colocar nisso... – Liana.
Ouvia meus amigos falando como se fosse através de um rádio mal
sintonizado. Envolvi meu dedo machucado com a outra mão e o apertei em uma
tentativa de estacar o sangue. Meus olhos se voltaram para Rhea que permanecia
impassível, sentada à cabeceira...
Como uma rainha impiedosa, cruel.
Seus olhos se mostravam famintos e predadores. Chegara a hora de comer. A bruxa
ia à caça. A voz explodiu em minha cabeça de novo, e o mundo girou diante
de meus olhos. Meus joelhos vacilaram e eu caí, batendo o queixo na borda da
mesa.
- Segura ele, Jon – Liana gritou histérica. – Ele não está bem.
Dois pares de mãos me levantaram pelas axilas. Na queda eu mordera a
bochecha, sentia gosto de sangue na boca. Meus olhos correram de novo para
Rhea, e agora sim ela sorria, escancarava os dentes. Pontiagudos, mortais.
- Quem é você? – eu gritei para a velha. Ela se levantou com ar inocente,
com cara de vovó. – Por que está fazendo isso?
Rhea tapou a boca com a mão. Parecia assustada e ofendida. Ninguém estava
entendendo nada.
- Criança... – ela começou.
- Ele não sabe o que está falando, Rhea – Jon disse, me mantendo de pé. –
Ele está mal, delirando...
- Não... – eu balbuciei.
- Vamos levá-lo lá para fora. – Herick correu para abrir a porta. – Tomar
um pouco de ar, lavar os ferimentos.
Jon e Dimas me carregaram para fora da casa da Rhea. O ar frio da
floresta me estapeou com força e eu berrei alucinado, querendo ser
compreendido.
- Vamos sair daqui!
- Calma, Edie – Jon falava baixo, aflito.
- A bruxa sai para caçar – eu continuei desesperado. – Nos caçar. A bruxa!
Senti meu corpo contra a pia de concreto. Dimas pegou minha mão e
mergulhou na bacia de água gelada. Uma ardência subiu pelos meus dedos e
atingiu minha espinha, me encolhi de surpresa e dor. Dimas esfregava minha mão
para se livrar do sangue. Os outros rodeavam a pia de concreto, me encarando
como se eu tivesse enlouquecido, surtado.
- Cadê o Marino? – perguntei aflito, minha cabeça virando de um lado para
o outro na busca. – Cadê ele?
- Edie... – Jon conseguiu dizer, estava assustado de verdade.
- MARINO!
E aí eu vi. Saindo da casa, amparando Rhea que andava lenta e
dolorosamente.
- Sai daí – eu gritei. – Larga dela!
- Edie, para! – Dimas me sacudiu. – O que é que você está fazendo?
Empurrei Dimas com força e me desequilibrei ao ser largado por ele.
Recuperei o prumo e me afastei de Jon, que tentou me segurar.
- Edie! – Perla gritou.
Não dei atenção. Corri em direção às árvores, aos galhos que serviam de
varal para Rhea. Os pedaços de carne, tantos pedaços de carne, agora eu sabia
de quem eram. Sabia. Meu estômago revirou de novo, eu não conseguiria segurá-lo
dessa vez.
Agarrei o que eu achei que fossem roupas, camisas, calças... Deus, não
estava na cara desde o início? A textura daquilo me deu asco, tocar aquilo era
insuportável. Jon me agarrou pelos ombros, tentando me deter.
- Edie, se controla. Droga!
- Não! – eu gritei
Com um puxão forte, arranquei dos galhos a pele humana que ali
descansava. Jon também me puxou e nós dois caímos de costas no chão. Jon gritou
de horror e repulsa. Sentei-me para contemplar o que eu já sabia, e vi o
invólucro de um ser humano em cima de Jon. Era como se, de alguma forma, o
esqueleto e os órgãos de um homem tivessem sido retirados por mágica e só a
capa que envolvia essa estrutura tivesse restado. Era disso que Jon tentava se
livrar.
- Tira isso de mim! – ele gritava. – Tira!
Amanda chegou correndo e viu a pele que cobria Jon. Uma careta de nojo
deformou seu rosto lindo e ela jogou o resto do que fora um ser humano para
longe. Jon levantou, se espanando como se isso de alguma forma fizesse aquela
experiência desaparecer.
- Que merda – Amanda gritou. – Era a pele de alguém... Toda a pele...
E ela voltou sua atenção para as carnes penduradas nos galhos. Seus olhos
se arregalaram com a compreensão.
- A carne... A carne...
Dimas cobriu a boca, impedindo um jato de vômito de sair. Perla não se
restringiu, caiu de joelhos e vomitou uma mistura de sólido e líquido. Ela
tremia, chorava e vomitava em um ciclo que parecia interminável.
- Minha Nossa Senhora... – Jon disse por fim.
- Foi um jantar adorável, não se desfaçam dele agora – uma voz rouca e
potente disse. A voz de Rhea, mas parecia que ela tinha sido amplificada.
Nos viramos para encará-la ao mesmo tempo, quase como se tivéssemos
ensaiado. Emoldurada pela porta de madeira, lá estava Rhea. Ou algo muito
parecido com ela. Seus ombros tinham se alongado e engrossado, sua postura,
antes encurvada e frágil, agora era altiva, perigosa. O vestido preto se
rasgara na altura dos quadris, revelando uma pele dura e marrom, uma armadura.
Mas o que fazia toda a diferença era o rosto, nada mais de pele enrugada e
caída, nada mais de boca pequena. O rosto se alongara, chegando próximo à
aberração, a pele agora assentava todo ele. Um sorriso demoníaco e debochado
revelava seus dentes de piranha, os dentes que eu vira à mesa.
- Marino! – Liana gritou, desesperada.
Seu namorado estava ajoelhado, nos encarava suplicante. Rhea o segurava
com uma chave de braço, que eu tinha certeza, já tinha esmigalhado os ossos de
Marino.
- Por favor... – Marino balbuciou, fraco. – Por favor...
27.
De repente, as vozes da floresta pareciam sussurrar obscenidades e
pragas. O ar ficou pesado com chumbo, frio com se estivéssemos em pleno inverno
no hemisfério norte. O chão mexeu um pouco, eu quase caí de novo.
- Solta ele! – Liana gritou, as lágrimas lavando seu rosto, seu hálito se
transformando em uma névoa branca.
- Digam-me, então, crianças... – Rhea falou com sua voz de trovão. – O jantar
estava à altura?
Perla cobriu o rosto com as mãos, estava chorando.
- O que quer da gente? – eu perguntei, a voz firme, alta.
Rhea torceu com mais força o braço de Marino. O estalo do osso ecoou na
clareira silenciosa. Marino gritou de agonia e Liana o acompanhou.
- Eu quero que vocês respondam minha pergunta – Rhea tornou com raiva. –
Estava à altura, meu jantar? Estava, garota linda?
Rhea olhou para Perla sorrindo com malícia. Perla caiu de joelhos, aos
prantos. Limpava a boca com as costas das mãos com a habilidade de um obsessivo
compulsivo.
- Quer botar tudo para fora? – Rhea perguntou, parecendo mortalmente
desapontada.
Um trovão reboou ao longe, mas não havia nenhuma formação de nuvens no
céu. Rhea apontou um dedo longo e esquelético para Perla, que se curvou para o
chão, gritando de dor.
- Para! – eu gritei, impotente. – Para com isso!
Rhea gargalhou em êxtase e, de repente, Perla estava vomitando novamente.
Mas desta vez não era um jato, era uma enxurrada de vômito vermelho e gosmento.
Ela estava de quatro no chão, a boca aberta despejando tudo o que ela comera
hoje, ontem, sempre.
- Para! – tentei de novo.
Rhea continuava com o dedo em riste, apontando para Perla, que perdia as
forças e caía lentamente no rio formado por seu próprio vômito. Olhávamos
aquilo sem ação, paralisados. Vi uma substância amarelada misturada com o
vermelho intenso. A bílis. Meu Deus...
E eu senti o que muito provavelmente Bruce Banner sentia poucos segundos
antes de se transformar em Hulk. Meu sangue ferveu, a raiva aqueceu meu corpo
de cima a baixo, não me surpreenderia se fumaça estivesse saindo dos meus
ouvidos.
- PARA COM ISSO! – Eu soquei o chão, colérico, incontrolável.
E eu causei um tremor. O chão dançou em nossos pés por um momento e uma
fenda se abriu no lugar que eu golpeara, se alastrando até a porta da casa de
Rhea. Ela se voltou para mim, a surpresa estampada em seu rosto monstruoso.
Funcionou. Rhea desviara a atenção de Perla, que parara de vomitar. Amanda e
Dimas correram para ajudá-la.
- Agora, você vai sair do caminho – eu ordenei.
Rhea riu da minha cara, o que não me deixou menos combativo. Tinha
qualquer coisa em mim que queria um confronto, pedia por ele. Talvez fosse a
adrenalina, ou eu estivesse mesmo ficando louco.
Mais uma torção no braço de Marino. Suas pernas dançaram no ritmo da dor,
parando em ângulos estranhos. Rhea aproximou o rosto do pescoço dele. Da sua
boca, uma língua grossa e pestilenta saiu como uma cobra sairia da toca. A
língua nojenta passeou pelo pescoço de Marino, deixando um rastro vermelho de
dor e queimação. Liana chorou mais alto.
- Vem, criança – Rhea me desafiou. – Banca o herói, salva o dia. Tenta.
Dá um passo para ver o destino de seu amiguinho.
Não tinha medo ou hesitação no olhar de Rhea. Lembrei de algo que ouvira
há algum tempo, mas não conseguia me lembrar onde. Alguma coisa a respeito de
monstros, que os monstros eram seres sem consciência. Naquele momento eu
entendi o que aquilo queria dizer.
- Nos deixe ir – eu falei. Eu não era um monstro, tinha consciência,
medo, e minha voz tremeu. Ponto contra. – Não precisa da gente.
Rhea riu debochada.
- Você tem comida. – Eu apontei as carnes penduradas. – Mais do que pode
aguentar.
- Pode ser. – Rhea me encarou. – Mas eu sempre prefiro carne fresca.
Rhea atacou o pescoço de Marino, seu maxilar se expandindo para baixo,
deixando sua boca imensa, inacreditável.
Liana gritou de horror, e Rhea arrancou com sua bocarra metade do pescoço
de Marino. A metade restante não aguentou o peso da cabeça e tombou para o
lado. A cabeça de Marino estava deitada em seu próprio ombro, apenas alguns
ligamentos e um naco de pele mostravam que um pescoço existira ali, unindo
torso e cabeça há menos de cinco segundos.
Exclamações de horror e indignação cresceram ao meu redor, meus
companheiros se dividiam entre o choque e o medo. Perla, quase inconsciente,
era a única calada. Amanda e Dimas, que a seguravam, lançavam maldições e
pragas. Herick e Gaspar partiram para uma ação mais concreta, atirando pedras
que nem chegaram a encostar em Rhea, e os olhos de Jon dançavam pelo chão,
pelas árvores, pelo ar, como se a nossa salvação estivesse escondida em algum
desses lugares.
Rhea engoliu o pedaço que arrancara de Marino e soltou um arroto sonoro.
Gargalhou, maligna e indiferente, seus olhos brilhando de odiosa satisfação.
- Delícia – ela disse. – Carne fresca, não tem nada melhor. Eu não
preciso nem falar, vocês sabem como é.
E jogou o corpo inerte de Marino para o lado. Ele fez uma dança macabra
pelo ar antes de cair, o rosto virado para o chão, as pernas abertas, quase
vulgares.
- FILHA DA PUTA.
Liana gritou e avançou contra Rhea, a voz de choro, os olhos vermelhos de
raiva. Minha voz ficou presa na garganta, mas eu sabia que o ataque a Marino
tinha sido só um aperitivo. A mão de Rhea adquiriu um brilho esverdeado, parecia
que ela segurava a maior esmeralda do mundo.
Ela jogou a mão brilhante para trás, como se estivesse se preparando
para jogar uma bola, e foi exatamente isso que saiu de sua mão: uma bola verde
incandescente que ela jogou contra Liana.
A bola brilhou todo o caminho até o peito de Liana, e entrou em seu corpo
sem barreiras, como se fosse feita de pura luz. Liana foi jogada para trás com
uma força inumana, seus pés riscando o chão, levantando poeira. Rhea balbuciou
palavras ininteligíveis antes de cair na gargalhada, e Liana foi suspensa do
chão. Seus gritos de agonia eram os mais pavorosos que eu já ouvira na vida.
Corri até ela, Dimas e Herick fizeram o mesmo. Mas antes de chegarmos
perto, o corpo de Liana se dobrou ao meio, a testa encostou nas pernas
esticadas à frente, e quando ficou ereto de novo, foi só para seu esqueleto ser
expulso do corpo por um rasgo imenso que dilacerava toda sua parte traseira. Um
tsunami de sangue acompanhou o esqueleto completo de Liana que pairou no ar por
um segundo, antes de cair no chão, os ossos quebrando numa sucessão
angustiante.
Minhas pernas cederam ante aquela visão e eu caí, os olhos arregalados
ainda vendo aquela pálida e repulsiva versão de nossa amiga. Com o esqueleto
removido, a carne, os órgãos e a pele de Liana pareciam uma estranha fantasia
ou uma daquelas capas que protegem vestidos. O grito de Amanda nos envolveu a
todos e os restos de Liana se entulharam no chão com um som molhado e
repulsivo.
Dimas vomitou nos próprios sapatos, Herick caiu de joelhos no chão, os
olhos marejados, o rosto transfigurado numa careta de horror.
- Dois em oito – Rhea riu-se. – Devo continuar?
Tomando nosso silêncio como resposta, Rhea levantou os braços e o chão
tremeu de novo. Pedras minúsculas pipocavam do solo enquanto tentávamos nos
manter de pé. Foi aí que uma raiz afiada emergiu do chão, não acertando meu pé
por um milímetro. Outras vieram logo em seguida tentando me alcançar, pareciam
cobras atiçadas por um encantador.
- Corram! – Jon gritou e escapou com um pulo de uma raiz particularmente
grossa que quase agarrou seu pé.
Não tínhamos muito espaço naquela clareia, Rhea fechava a passagem
adiante, e se voltássemos pelo caminho que tínhamos vindo, as árvores acabariam
com a gente. Só podíamos correr como baratas tontas no espaço circular da
clareira enquanto as raízes rompiam o solo e nos caçavam.
Não demorou para o primeiro de nós ser pego. Uma raiz perfurou o pé de
Gaspar o derrubando de costas. Outra se enroscou em sua cintura e se elevou,
mantendo-o preso como um troféu nas alturas.
Amanda sacou a pistola e atirou em uma raiz que avançava contra ela. A
coisa se partiu em duas, mas a parte ligada ao solo não desistiu da caçada.
Amanda mirou, mas foi surpreendida por seis raízes que saíram do chão, envolvendo-a
como em uma gaiola. A raiz deformada se esgueirou para dentro daquela prisão
natural e golpeou seu braço. A arma voou longe.
Jon nem teve tempo de usar sua arma, foi pego pelos braços e suspendido
no ar assim como Gaspar. Perla e Dimas foram pegos juntos, uma raiz os envolveu
pela cintura, seus braços colados aos corpos.
- Herick! – eu gritei. – Abaixa.
Ele obedeceu e uma raiz passou reto por onde sua cabeça estaria. Com o
corpo dobrado, Herick correu para o lado, eu segui em seu encalço. Rhea mexia os
braços como se estivesse orquestrando o ataque.
- Faz alguma coisa, Edie! – Herick gritou enquanto pulava por cima de uma
raiz que por pouco não pegara seu pé.
- O quê?
Uma raiz veio direto em minha direção, na altura dos meus olhos. Como se
tivesse vida própria, meu braço se ergueu, segurando a raiz antes que ela me
atingisse o rosto. Senti a coisa se contorcendo em minha mão, irada,
impaciente. Segurei-a com as duas mãos e puxei com força. Uma das árvores nanicas
de Rhea afundou no chão com violência.
Herick gritou e eu o vi sendo suspenso por duas raízes, uma lhe prendendo
os pés, a outra, os braços acima da cabeça. As raízes se voltaram contra mim, o
alvo remanescente.
Corri me livrando delas, parecia um medalhista olímpico em uma prova de
obstáculos. Ouvia meus amigos gritando por mim, para mim. Rhea entrou em meu
campo de visão, precisava chegar até ela, distraí-la como fizera da última fez.
Chutei uma raiz que tentava se enroscar em minha cintura, e avancei
contra Rhea tão rápido que parecia estar voando. A expressão de surpresa
novamente cobriu seu rosto, e um pequeno tremor no solo me alertou. Tomei um
impulso e pulei no exato momento que uma imensa raiz emergiu do chão como um
monstro marinho num pequeno lago, não me pegando por pouco.
Venci a distância que me separava de Rhea com aquele salto e, pegando-a
desprevenida, agarrei seu pescoço magro e ossudo. Um grito estridente e raivoso
saiu de sua boca, balançando a copa das árvores e fazendo as raízes vacilarem.
- Eu acabo com você, desgraçada!
Uma gosma esverdeada e brilhante começou a sair da boca aberta do monstro,
escorrer pelo queixo e pingar em minhas mãos. Minha pele queimou ao entrar em
contato com aquela substância e eu soltei o pescoço de Rhea, que me empurrou
com violência.
Caí de costas no chão e ela voou em minha direção, as mãos transformadas
em garras mortais. Rolei de costas para longe e Rhea enterrou suas garras no
solo. Levantei com um pulo e chutei com força o rosto monstruoso dela, forçando
mais gosma ácida para fora de sua boca. Rhea se voltou contra mim, as presas à
mostra, os olhos emanando ódio. As raízes nos rodeavam, como se estivessem decidindo
se continuavam o ataque, mesmo pondo em risco sua mestra.
- Sabe que eu posso acabar com seus amigos com um pensamento? – Rhea rosnou,
tentando parecer debochada.
Para provar isso uma raiz investiu contra mim. Eu me desviei, correndo e
pulando. Uma ideia invadiu minha cabeça, não dando lugar a nenhuma outra. Corri
ao redor da clareira, raízes pipocando do solo a cada metro, me caçando. Rhea
gargalhava. Eu estava atrás dela, podia ver suas costas anormais. Dei uma volta
completa na clareira, as raízes no meu encalço, sempre. Com um impulso me
lancei no ar, não vou dizer que voei, mas fui muito alto, tão alto que sumi de
vista por poucos segundos.
Confusa, Rhea olhou para cima, mas eu já começara a descer. Pousei em
frente a ela, nossos rostos a centímetros um do outro. Rhea arregalou os olhos,
surpresa.
- Pensa nisso, sua puta.
Dei um grande salto para trás quando ouvi as raízes. Rhea nem teve tempo
de se virar, foi surpreendida pelas costas. Uma raiz atravessou sua cabeça,
outras três, seu peito, e continuaram avançando contra mim. Mas pararam antes
de me alcançarem.
Rhea estava morta, suas ordens já não valiam. Empalada por suas raízes, a
bruxa parecia um estranho espantalho, em pé, os olhos esbugalhados de surpresa,
seu sangue verde e ácido jorrando por todos os ferimentos.
As raízes vacilaram e cederam. Jon, Gaspar e Herick caíram de quase dois
metros, mas não se machucaram, correram e foram ajudar os outros a se soltarem
das amarras. Como bichos sem dono, as raízes se esgueiraram de volta para
dentro do solo. No horizonte, o sol nasceu preguiçoso, tingindo o céu negro de rosa e
azul. Um novo dia começara na floresta.